Bartleby, o escrivão: uma história de Wall Street – Herman Melville

O subtítulo do livro, “uma história de Wall Street”, carrega uma simbologia de rara sagacidade na literatura, e mostra por que este é um verdadeiro clássico.

Atenção: Essa resenha contém spoilers.

Bartleby é um escrivão recém-contratado por um advogado renomado na cidade de Nova York. Com a atribuição do cargo de procurador no Tribunal de Contas, as demandas de seu escritório aumentaram e foi preciso encontrar um novo escrivão para trabalhar juntamente com os outros dois copistas e um office boy já empregados. Bartleby aparece como candidato, e mostra-se, num primeiro momento, muito eficiente. Até que num determinado dia, solicitado a desempenhar uma tarefa, o novo escrivão responde, numa voz firme mas tranquila: “prefiro não”.

Essas são as palavras que marcam a trajetória singular do conto.

É muito curioso como o narrador seja o próprio chefe do escritório, em vez de um narrador não personagem ou até em vez de Bartleby, por exemplo (ou qualquer outro de seus funcionários). Obviamente, isso torna a narrativa em si menos confiável. Parece haver uma grande preocupação em se justificar e até convencer o leitor de que seus esforços e condutas foram as mais nobres e justas possíveis, dentro de um sistema impassível, o capitalismo de Wall Street. Por outro lado, não faria sentido algum que a história fosse narrada por Bartleby, que prefere não desempenhar nada daquilo que lhe é sugerido ou mesmo ordenado. A primeira recusa de Bartleby já se dá, portanto, nesse primeiro momento, ao não se envolver diretamente na narrativa, fixando-se claramente, desde o princípio, como sujeito passivo.

Fato a se notar também é que já no início do conto, é dado ênfase primeiro ao escritório em si, na sua localização e em seu ambiente. Os funcionários são secundários na descrição, e isso também vai agregando críticas sociais ao conto. Nessa contextualização material ao leitor, o advogado conta ainda que havia uma janela cuja vista dava para uma alta parede de tijolos. Bartleby desenvolvia seu trabalho encarando essa parede; até que passou a não desenvolver mais trabalho algum.

Voltemos ao primeiro parágrafo deste texto. A simbologia de Wall Street na narrativa. Wall Street, ao pé da letra, traduz-se como “rua do muro”. E encarando esse muro, essa barreira, é que nosso escrivão parece ter uma espécie de epifania que o imobiliza não apenas para o trabalho, mas para a vida, atingindo o ápice de um não fazer ao fim de sua narrativa.

Esta é uma história que pode ser interpretada em muitos sentidos, desembocando, porém, sempre em críticas sociais. Para tocar num assunto bastante contemporâneo, basta analisar a ironia que há em legisladores com uma carga horária reduzidíssima decidirem sobre a escala alheia do 6×1 dos trabalhadores. É esse vazio do matar-se de trabalhar e não sobrar tempo para viver adequadamente que a visão da parede de tijolos trouxe à tona em Bartleby. Entender esse vazio existencial e posicionar-se dentro dele é algo difícil de ser transposto.

A história é deliciosamente bem escrita, e a tradução foi muito acertada. Esse é um dos favoritos do ano (e da vida, certamente), e uma das melhores leituras que fiz em 2024.

Nessa edição em especial, o projeto artístico visual é de Letícia Lopes, que datilografou o texto todo duas vezes em uma Remington 2.0, para simular o trabalho de um copista e entregar ainda mais fidelidade à proposta do conto. Obviamente, muito disso se perde quando se lê em e-book, mas é como por aqui consegui vencer a curiosidade e lê-lo o mais breve possível. Os textos de apoio e a preparação, por Cristina Parga, também somam-se à qualidade da edição, e é a qual eu recomendo.


Dados Técnicos do Livro:
  • E-book para Kindle: ‎107 páginas
  • Autor: ‎Herman Melville
  • Editora: ‎Antofágica; 1ª edição (10 fevereiro 2023)
  • ASIN: ‎B0BSC9DQNY
  • Tamanho do arquivo: ‎11442 KB

Li este livro graças ao post do João Beardy, que traz também pra reflexão o fenômeno do “quiet quitting” (demissão silenciosa). Vale muito a pena ler (em inglês).

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