Quase todas sobrevivemos às mães – Deborah Couto

“Quase todas sobrevivemos às mães” traz a história de Cecília, que há pouco teve sua filha, Eva, e, dissuadida por seu marido, Caio, contratam Andrea para ajudá-la com a bebê e a casa. Logo, porém, vem a pandemia da Covid-19 também, obrigando todos a se isolarem, e mudando toda a dinâmica e a configuração do dia a dia das pessoas, inclusive na casa de Cecília e Caio. Antes disso, quando a notícia chega, a primeira coisa que passa pela cabeça de Cecília é “Como é que eu vou fazer sem a Andrea?”


Há muitas camadas no livro, visíveis ou não. Como a leitura é fluida, elas vão se revelando naturalmente, através do que é dito e não dito. Mas ainda que a revelação se dê de forma natural, isso não significa que chegue tranquilamente ao leitor.

As narrativas se alternam entre Cecília e Andrea, por meio das quais vamos construindo mentalmente os passados e dimensionando as personagens.

Cecília, em primeira pessoa, inicia sua narrativa de forma bastante clara e posicionada, como se ela soubesse muito bem quem era e o lugar que ocupava no mundo, mas ao longo da narração, vai se tornando um tanto apática, etérea, às vezes como se ela mesma não estivesse tão presente; isso fica bem evidente quando ela declara que a vida a engole, e os dias parecem todos iguais, um após o outro.

“Há meses não via o mar. É estranho ser vizinha do horizonte e ter perdido o interesse por ele, hipnotizada pelo horizonte infinito dentro do carrinho.”

Contrasta com isso a narrativa em terceira pessoa, que traz a empregada Andrea como ponto de partida. Ainda que seja muito mais ativa que Cecília, a vida a “engole” de outra maneira. Existe essa limitação que lhe é imposta pela passividade de ser personagem e não narradora da própria vida. E ao mesmo tempo em que muito faz, pouco do que se passa em sua cabeça é verbalizado, e tal fato é lido de forma elogiosa por Cecília.

Foi uma leitura bem diferente do que imaginava, mas nas muitas camadas da história, é possível vislumbrar aspectos da maternidade que eu esperava que fossem abordados: a culpa, o cansaço, mas sobretudo a solidão da maternidade.

“[…] a solidão é o monstro das mães.”

Ainda que cada maternar seja único, existe também com frequência uma espécie de perda de si mesma como mulher, uma trajetória de “autorredescobrimento” pela qual muitas mães acabam passando. Exceto que em “Quase todas sobrevivemos às mães”, Cecília não parece se dar conta do quanto precisa e nem parece saber como se reencontrar.

“E quanto mais colo Andrea dava, quanto mais comida fazia, mais o buraco de Cecília aumentava.”

Cecília, no início do livro, fornece uma descrição muito rica de si mesma, sobre quem era, e o que fazia, mas há a nítida divisa entre aquela Cecília, de antes de Eva, e a Cecília depois de Eva. Deixando algumas pistas, nesse início, de quem ela não é mais, ao longo da narrativa, porém, ela deixa de dizer quem se tornou. Acho que é uma sensação muito real para muitas mulheres que vêm a se tornar mãe, de não saberem mais se descrever a não ser como mães.

É uma história triste de um jeito silencioso e incômodo. É o silêncio que perturba. As palavras não trocadas entre o casal, as conversas que não acontecem, o romance silencioso, a carência e a solidão, o que se faz às portas fechadas. Sufoca a quase inexistência de diálogos ao longo de toda a narrativa, os quais são servidos à conta-gotas, e quando acontecem, são em momentos de tensão que não se resolvem explicitamente, deixando novamente o silêncio das entrelinhas ao leitor. Fica tudo por sua conta preencher as lacunas, imaginar o que se passava pela cabeça das personagens e o que elas teriam dito, se ousassem dizer. É assim que se vai sobrevivendo à narrativa e às personagens, e, quando nos damos conta, é assim também que muitas mães (e filhos, e casais) vão sobrevivendo.

“O choro da sobrevivência. Às vezes ele não é suficiente e a criança fica magrinha. Depois triste. É assim que se passa uma tradição de geração para geração.”

Dados Técnicos do Livro:
  • Capa comum: ‎108 páginas
  • Autora: Deborah Couto
  • Editora: ‎7Letras (5 abril 2024)
  • ISBN-10: ‎6559057232 – ISBN-13: ‎978-6559057238

Exemplar recebido em parceria com a Agência Literária Oasys Cultural. Adquira seu livro preferencialmente através do site da editora.

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