Fui atraída instantaneamente pela capa, sim, confesso. Que ilustração mais primorosa! Que jogue a primeira pedra quem nunca comprou um livro só pela capa. Claro, eu amei a capa, mas não foi apenas isso. Depois de ser tomada pelo fascínio visual em si, meu primeiro pensamento ao ler o título foi lembrar-me de “Trem Noturno da Via Láctea”, de Kenji Miyazawa, cuja história traz um garoto que sofre bullying na escola e deseja ser possível pegar um trem para viajar pela Via Láctea, mesclando sonho e realidade. “Ônibus noturno”, por sua vez, tem também essa mistura onírica com a realidade, mas numa outra proposta, já que não aborda o “mundo dos sonhos” como um escapismo ao bullying, mas como uma metáfora da fragilidade entre os tecidos da realidade e do devaneio quando uma pessoa é tomada pela demência.

Zuo Ma, em “Ônibus noturno”, vale-se da metalinguagem, apresentando como protagonista um quadrinista em crise, que retorna à sua cidade natal e encontra sua avó consumida pela demência. No epílogo do livro, Zuo Ma relata que sempre foi muito próximo de sua avó, que foi quem o criou. Depois que saiu de sua cidade para fazer faculdade, sentia, portanto, muito a falta dela. A avó teve demência, assim como nessa graphic novel, e, nas palavras do autor, era como se ela tivesse ficado “parada no caminho, transformada pela demência”, e então o ônibus noturno a leva finalmente de volta para casa.
Eu gostei como a história consegue levar dignidade à condição de demência da avó de Zuo Ma, que, na HQ, alterna entre a avó no mundo real, e uma garota à procura de seu ônibus, em meio a uma paisagem onírica. Por conta desse lado fantasioso da história, ela às vezes pode ser bem confusa ao leitor, mas talvez sejamos racionais demais e procuremos explicações para tudo, quando na verdade, o mais importante é deixar-se levar pelo caminho.
Então, convido-o a ler “Ônibus noturno”, como se você fosse apenas um passageiro, sem fazer perguntas demais, apreciando as paisagens surreais e aceitando o destino dele, seja lá onde o ônibus o conduza.
Zuo Ma é o nome artístico de Zou Jian, e destaca-se principalmente por suas histórias autobiográficas, sendo “Ônibus noturno” uma delas. Também é curioso que ele goste de revisitar seus trabalhos e modificá-los. Esta versão, por exemplo, trazida pela Veneta (2023), é a segunda já, e foi publicada em 2020. Na primeira versão, de 2018, algumas cenas foram redesenhadas e houve mudança na ordem de algumas delas; por isso, considero irrelevante tentar entender tudo detalhadamente e de forma racional para apreciar a qualidade e a essência da história. Por outro lado, fico muito feliz que nessa segunda versão, Zuo Ma tenha nos brindado com as belíssimas cenas coloridas que abrem a narrativa, já que elas inicialmente não existiam.

Por fim, gostei muito de ter conhecido um pouco das obras de Zuo Ma, e é também a primeira vez que leio uma graphic novel chinesa. A história é expressamente dedicada à avó, e eu realmente fiquei tocada por esse olhar tão amoroso de transformar sua condição de demência em uma busca pelo ônibus noturno, cuja viagem a levará de volta à sua antiga morada. E a vida não é isso mesmo, apenas uma viagem?
Dados Técnicos do Livro:
- Capa comum: 224 páginas
- Editora: Veneta (1ª edição, 20 outubro 2023)
- Autoria e ilustrações: Zuo Ma
- Tradução: Alexandre Szolnoky
- ISBN-10: 8595711100 – ISBN-13: 978-8595711105
*Edição adquirida na Livraria Martins Fontes – Av. Paulista, em abril de 2025. Já visitou uma livraria esse ano?