Conheço o amor incondicional e sem dimensões de quem ama alguém antes mesmo de conhecê-la, de amar a pessoa que ainda está se formando dentro do próprio útero.
Mas desconheço a dor que é perdê-la antes mesmo de poder tê-las nos braços. Desconheço a tristeza de uma expectativa carregada no coração e que, ao fim, não resulta numa nova vida.
Assim, não cabe a mim fazer consideração alguma a respeito de como uma mulher atravessa o luto do aborto espontâneo. Me sinto indigna até de falar sobre uma obra que parte dessa travessia, mas quero tentar, não por achar que tenho algo a dizer, mas justamente porque sua escrita veio a público e tornou-se um livro; este sim, parece ter algo a dizer, e é sobre ele que quero fazer alguns comentários.
Dias desses, estava eu aqui resenhando A autobiografia da minha mãe, um livro fictício, sobre uma filha que nunca conheceu sua mãe e como a história desta se transforma na história da própria filha, já que, no caso, a ausência é a permanência, ou seja, a ausência é o maior legado deixado à narradora-personagem.
Mas então eu me deparo com um livro de não-ficção em que a ausência é, em boa parte, dos próprios filhos. Me deparo também com uma mulher que recusa ser chamada de “mãe de anjo”. Recusa que chamem seus filhos não nascidos de “estrelas”, e, por fim, recusa também chame sua filha de “arco-íris”, pelas perdas gestacionais anteriores. Não é uma recusa que sai enfurecida, não no texto. É uma recusa da romantização sobre o que de fato é um aborto espontâneo. De início, fico sem saber o que comentar.
Mas acho que já foi nesse prólogo que o livro me mostrou que tinha muito a dizer. Ao recusar tais adjetivações, a consequência é apresentar ao(à) leitor(a) a possibilidade de alternativas. Cada mulher internaliza e elabora à sua própria forma uma perda gestacional, que, como já disse, não tenho lugar de fala algum sobre. Mas ao compartilhar sua escrita conosco, Cristina Parga talvez possa permitir que outras mulheres como ela atravessem esse luto, e que as pessoas passem a se sensibilizar mais sobre a questão do aborto espontâneo, tantas vezes minimizado com o “você pode tentar de novo”.
O termo “estrela”, então, cede lugar para “estreia”. O atributo veio de uma ideia de Walter Benjamim, que formula o conceito de “anjo/estreia”. Parga traduz e contextualiza rapidamente:
“Esses anjos seriam assim da ordem da iluminação e do tempo mínimo de um relâmpago. Um clarão que traz uma mensagem e se desfaz na noite. Um raio, com a função de iluminar subitamente – um apelo, um sopro de ar que nos toca – e que muda tudo.”
O livro, enxuto, é dividido em três partes (Blues, Encanto, e Encontro).
A primeira parte, Blues, é marcada pela ausência. Ausência, ao contrário do que possam imaginar, não é o vazio. Mas é tudo que pode ser definido pelo que não existe ou existiu. É o passado, mas também o futuro que não veio. É a expectativa frustrada, o questionamento da fragilidade humana, entre o fio que separa a vida da não vida. É a negação e o sonho. É a noite, com sua matéria inebriante, que une tristeza e delírios.
Em Encanto, há lucidez e mais questionamentos. Os textos se avolumam em palavras, e o tom que antes era lacônico e sombrio, ganha a atenção do leitor pelo raciocínio, pela elaboração e pela barganha. Não são textos frios. Às vezes são muito íntimos, quando compartilham, por exemplo, sobre a ideia de que a “impossibilidade de ter filhos está ligada à dificuldade de escrever, de dar algo meu ao mundo.”
Na terceira e última parte, Encontro, conhecemos, enfim, Catarina. A filha que ela teve de “mergulhar nas profundezas para buscá-la”. Todos os filhos de Cristina têm nome: Miguel, Antônio, Cecília e Catarina, e todos se sentam juntos à mesa. Essa imagem que a autora traz reforça sua convicção de que o passado nunca fica para trás, porque ele nos molda, e todos seus filhos contam também a sua história, e “[o]s que morreram não viraram anjos nem estrelinhas – são como uma nota musical vibrando no espaço, ad aeternum. São.”
Nesta última parte, Cristina fala da culpa materna que sente em diversos momentos, a qual parece unir todas as mães. Mas é porque ela sente que precisa escrever, para encontrar-se novamente, depois de se tornar mãe. Uma nova busca então, se inicia, mas sua travessia até ali está registrada nesse belo e corajoso livro.
A escrita é o encontro de nossos pensamentos com nosso idioma. Mas infinitas são as ideias, sensações e sentimentos que perambulam em nossa mente, e uma vastidão de palavras se combinam formando nossa linguagem. Ainda assim, algumas travessias humanas parecem difíceis de se assentarem sobre um papel.
Então talvez Cristina e Marguerite Duras estejam certas. Escrever exige mais força do que aquilo que se escreve. Este pode não ser um livro confortável de se ler, mas o resultado é admirável, não apenas pela força que deu origem a Catarina, mas porque ao não se conformar, Cristina se transforma e transforma os leitores junto.
Este livro pertence à coleção Mãe Leva Outra da Editora Urutau, selo Hecatombe, um espaço para pesquisa, discussão, leituras e eventos sobre maternidade. Siga o perfil no Instagram e acompanhe as novidades.
Dados Técnicos do Livro:
- Capa comum: 80 páginas
- Autora: Cristina Parga
- Editora: Hecatombe – selo da editora Urutau (Cotia, abril de 2024)
- ISBN: 978-65-6035-009-0
Livro recebido em parceria com a agência literária Oasys Cultural. Adquira o seu preferencialmente pelo site da editora.