“Quando eu morrer, o fio de prata de um colar de pérolas vai se arrebentar, e todas as pérolas, lisinhas e acetinadas, vão rolar pela terra e correr de volta para a casa delas, para suas mães-ostras lá no fundo do mar. Quem vai mergulhar e apanhar minhas pérolas depois que eu tiver ido embora? Quem vai saber que elas eram minhas? Quem vai adivinhar que antigamente, há muito tempo, o mundo inteiro pendia em torno do meu pescoço?” – Jostein Gaarder, em “Através do Espelho”

Alguns livros são mais difíceis de ler que outros. Não pelo vocabulário, nem mesmo pelos recursos narrativos. São difíceis porque são trajetórias árduas de se atravessar. E que mãe deveria passar por isso? Perder um filho em sua tenra infância? Mesmo quando o desfecho já é certo e somos desde o princípio alertados que estamos lidando com o luto materno, saber não diminui o pesar. Mas se são difíceis de acompanhar, que dirá escrevê-los?
Por outro lado, vejo a escrita como uma espécie de aliada no luto. Porque é preciso elaborá-lo.
Em “Frida: a biografia”, Hayden Herrera diz que a artista mexicana “[a]o pintar a si mesma sangrando, chorando, aberta ao meio, […] transmutou sua dor em arte com extraordinária franqueza, temperada com humor e fantasia.”
A escrita, assim como a pintura, é uma arte potente. Marina Lima também transmuta sua dor, a perda de seu filho Leon, numa espécie de arte. Tenho certeza que as páginas não dão conta do tamanho de algo tão pessoal e subjetivo, mas a beleza da arte é que ela transcende aquilo que é tangível. Tangível é o livro que tenho em mãos, e que me fez derramar mais lágrimas do que talvez fosse apropriado para uma dor que não me cabe. A transcendência, porém, conta sempre algo diferente. O que eram talvez apenas “notas” se transformaram, e agora compartilham uma vida, com uma carga de amor sem igual, que é impossível não se condoer e não colocar a própria vida em perspectiva.
Partilhar uma dor tão grande como essa não a dilui, tenho certeza, mas é capaz de fazer a vida se abrir de formas talvez incompreensíveis. A literatura, como Marina relata, por mais rica que seja, às vezes, parece não dispor de todos os traumas a que as pessoas são submetidas. E, como disse Toni Morrison, “se há um livro que você deseja ler, mas ele ainda não foi escrito, então você deve escrevê-lo”. “Notas da mamãe morrente” encontrará leitores que, assim como Marina, procuram nos livros reflexões para os que ficam depois que seus filhos partem, com tão pouca idade.
Em sua escrita, vemos a autenticidade estampada, despreocupada com julgamentos alheios, relatando suas angústias, culpas e alegrias, e junto a todos esses sentimentos, Marina perfila os lugares em que Leon esteve. Esses marcos podem ser apenas lugares num mundo imenso, mas são tangíveis, e consola saber que por ali passaram pessoas amadas, deixando seus rastros, ainda que invisíveis.
Uma pergunta que sempre me fiz ao ler “Através do Espelho”, de Jostein Gaarder é “quem vai saber que eu existi, da forma como eu existi?”.
Há uma dor inimaginável transbordando das páginas de “Notas da mamãe morrente”, e uma beleza injusta, resultante da combinação de palavras que narram a vida abreviada tão prematuramente. Se por um lado tomamos conhecimento de doenças que talvez nunca soubéssemos da existência e desperta em nós ainda mais a compaixão, revoltamo-nos com as burocracias que mostram sempre a face mais cruel e fria do ser humano, regida pela ganância. Compreendemos, porém, a imperfeição da humanidade, na culpa e na franqueza de Marina. Há um misto de emoções difíceis nesta leitura. Fúria, frustração, tristeza. Mas há a singeleza, a força e a doçura de Leon.
Leon esteve em muitos lugares, e mesmo que bastasse sua mãe saber quem ele foi neste plano, agora ele habita a imensurável natureza, mas habita também todos os lugares alcançáveis apenas pela intangibilidade da arte, convertida nas palavras que irão ressoar naqueles que lerem este livro.
Um agradecimento especial à Oasys Cultural, por sua curadoria na hora de pensar em potenciais leitores. Não acredito ser capaz de trazer uma resenha crítica sobre este ou qualquer livro que me chega às mãos, academicamente falando. Estas são minhas impressões de leitura e o que eu gostaria de dividir com outros potenciais leitores.
Dados Técnicos do Livro:
- Capa comum: 192 páginas
- Autora: Marina Lima
- Editora: Pasavento, 1ª edição (9 de maio de 2025)
- ISBN-10: 8568222528 – ISBN-13: 978-8568222522