Depois de ter sido arrebatada pela surpreendente leitura de A terra inteira e o céu infinito, fiquei bem empolgada quando topei com O livro da forma e do vazio na livraria. Eu não estava sabendo do lançamento (em dezembro de 2024) e nem procurando por nada específico aquele dia, mas às vezes acho que essa é a melhor forma de um livro se encontrar conosco.
Aliás, engraçado eu tocar nesse ponto. De que foi o livro que se encontrou comigo, e não o contrário. Porque é bem essa a proposta dessa história.
O livro da forma e do vazio conta a história de Benny, um garoto que perdeu seu pai aos 12 anos. Essa perda trouxe traumas, e a partir de então, Benny começa a escutar vozes. Mas não são quaisquer vozes. São vozes das coisas, dos objetos, das tralhas, de tudo que nos parece inanimado. E se os objetos têm vozes, quem melhor para narrar a história do garoto senão o próprio livro? Sim, o narrador é o livro. Mas é Benny também, conversando com ele. De certa forma, por conta dos assuntos abordados no livro, o impacto dessa leitura talvez seja comparável a quando fiz minha primeira leitura de O mundo de Sofia. Há um envolvimento entre livro e leitor que nos joga para dentro do livro ao mesmo tempo que as pessoas do livro parecem se tornar reais diante de nós.
Quem já leu alguma obra de Ruth Ozeki, talvez saiba como a autora, com muito talento e perspicácia, consegue abordar temas como religião (sobretudo o zen-budismo, da qual é adepta e monja), filosofia, ciência e outras questões. O livro da forma e do vazio traz uma crítica bem clara à nossa sociedade capitalista e sobretudo consumista, não só de bens materiais, mas também, hoje em dia, por causa das mídias sociais, do exacerbado consumo de conteúdo, muitas vezes confundido com “notícias”.
A mãe de Benny, Annabelle, é uma monitora de mídias, mas seu trabalho começou quando as mídias se resumiam a jornais, rádio e televisão. Ela, junto com outras mulheres, monitorava notícias de acordo com o interesse dos clientes da empresa para a qual trabalhava, recortando notícias de jornais e escrevendo relatórios sucintos sobre tais matérias, formando um compilado cujo objetivo era facilitar a análise de determinados dados e fatos para esses clientes. Annabelle e suas colegas eram chamadas de “as damas das tesouras”. O formato das mídias, porém, mudou, e impressos perderam a força, transformando-se nas mídias sociais que conhecemos hoje. Assim, seu cargo perdeu a razão de ser e seu emprego também ficou por um fio. Graças à sua insistência em ser treinada para monitorar nos novos formatos de mídia e se dispor a trabalhar de casa, o emprego foi mantido; uma preocupação a menos para lidar. Já basta afinal ter perdido seu marido e agora ter um filho que requer acompanhamento psiquiátrico e tratamento com remédios caros.
Mas, segundo Annabelle, a empresa tem uma política de arquivamento rigoroso das notícias que são utilizadas como fontes. E a casa de Annabelle, sem a participação de seu parceiro e com um filho adolescente com os próprios problemas para lidar, acaba se tornando um verdadeiro depósito de bem… lixo. Impossível não me lembrar da “bagulhificação”, de Philip K. Dick.
Agora, pegue-se imaginando todo o conteúdo que você consome diariamente, rolando o feed infinito das mídias sociais às quais têm acessO, e que todo esse conteúdo se materializasse em sua casa. Não haveria sacos de lixo o suficiente capaz de contê-los, certo? Acho que essa materialização, na casa de Annabelle e Benny é perturbadora, mas por que, afinal, também não ficamos perturbados com o tanto de conteúdo que consumimos diariamente e com o qual, na verdade, nosso cérebro não é capaz de lidar?
No livro, como os objetos têm voz própria e a usam, quanto mais entulhada a casa fica, mais Benny sofre. De verdade, durante toda a narrativa, o diagnóstico do distúrbio mental de Benny nunca foi minha curiosidade. Acho que independente do que o esteja fazendo ouvir tais vozes, a ideia de que todo o acúmulo é mais do que apenas uma perturbação visual e espacial em sua casa, e sim que aquilo tudo gera um ruído insuportável ao garoto, simboliza bem os excessos materiais e imateriais em nossa sociedade.
“O que faz uma pessoa querer tantas coisas? O que dá às coisas o poder de encantar e será que existe um limite para o desejo por mais?”
Mas o livro é muito mais que isso. Com Benny e Annabelle tendo de lidar com o luto pela perda de Kenji (respectivamente, pai e marido), há trechos de cortar o coração; do ponto de vista aqui, claro, de uma mãe, que também assiste (não passivamente) ao crescimento do próprio filho, vendo-o migrar de fase em fase, perdendo e ganhando novos interesses. Fiquei particularmente tocada com o fato de ser a paixão adolescente que volta a despertar um pouco de curiosidade no garoto sobre os interesses de sua mãe, e assim, de alguma forma, eles voltam a ter algo em comum, embora cada um à sua maneira.
Benny também conhece figuras interessantes ao longo da história, e esses personagens a todo momento somam nas reflexões; ninguém está sobrando ou é dispensável, o que é sempre prazeroso demais em calhamaços: a sensação de que não estamos sendo arrastados por linhas e linhas despropositadas.
Além disso, os ensinamentos zen-budistas, inseridos no livro com graciosidade e uma coesão impressionante, fizeram dessa leitura muito mais impactante para mim e aprofundara m questões filosóficas levantadas na obra, como: o que é real?
Por fim, assim como no primeiro livro que li de Ozeki, questões ambientais são abordadas também, já que o consumismo desenfreado gera toda sorte de descarte, e sua discussão é bem cabível numa história como essa.
Este é, portanto, um livro que veio a se tornar um novo favorito da vida para mim. E depois de lê-lo, tenho a convicção de que ele é que saltou nos meus braços aquele dia para que eu o levasse. Ele sabia que eu ia encontrar algo especial nele. E ele estava certo. Brincadeiras à parte, fiz muitas marcações com flags e chorei em algumas passagens, sorri em outras, suspirei um tanto de vezes e torci demais pela salvação de Annabelle e Benny. Num livro que trata também sobre a conexão e interação entre as pessoas, ainda que de maneira presencial, foi inevitável me sentir conectada com seus personagens. Recomendo demais.
Olá, eu sou a Isa. Sou apaixonada por livros, viagens, culinária, e, claro, pelo meu amor maior, meu filho. Decidi juntar todas essas paixões num blog só, e aqui estamos.
Minha paixão por livros se deu tardiamente, na adolescência, mas quando aconteceu, foi de forma arrebatadora. Já viajar eu gosto desde bebê (até onde me contam). E cozinhar é uma terapia. Ansiosa e tímida por natureza, meu meio de comunicação preferido sempre foi a escrita. O blog me ajuda a manter a calma e ainda me permite compartilhar meus pensamentos e me sentir menos sozinha nessa trilha da maternidade.
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