Como tomei conhecimento da existência do livro A Vida que Ninguém Vê já poderia ser visto como um exercício tautológico do enxergar além, de (re)ver aquilo que passa batido.
Creio que foi por volta de 2018 quando comecei a acompanhar quase que diariamente o jornal El País Brasil, com um favoritismo pessoal inegável pelos artigos de opinião — colunas que não costumam ser do maior interesse das pessoas, sempre ávidas por notícias (as mais atualizadas possíveis) e porque parecem sempre dispensar a opinião alheia, sempre muito seguras de que elas mesmas é que sabem das coisas; os outros é que estão errados.
E numa dessas passadas diárias pelo editorial online, me deparei com a matéria de Joana Oliveira, falando sobre o livro premiado de Eliane Brum (Jabuti em 2007) — este do qual falo, A Vida que Ninguém Vê.
Já havia lido uns pares de textos da jornalista Eliane Brum no editorial, e inúmeras vezes vi citações suas espalhadas por blogs que sigo, mas nunca tinha lido nenhum livro seu. Foi assim que me dei conta de que, embora eu conhecesse um pouco de seu trabalho, eu não sabia exatamente do que se tratava o seu trabalho: uma vida que eu não estava vendo inteiramente também. Como isso é possível? Às vezes nos encerramos demais dentro das nossas próprias vidas, e não enxergamos as dos outros. Infelizmente.
E foi então preciso o artigo de Joana Oliveira para me despertar. Sua matéria me cativou instantaneamente e me instigou a leitura do livro, que ficou alguns meses aguardando na minha lista de leituras desejadas, até que eu o recebi como um verdadeiro presente, num momento muito oportuno. E foi com ele que eu inaugurei meu ano de 2020 no meu amado universo dos livros.
Sinopse:
Uma repórter em busca dos acontecimentos que não viram notícia e das pessoas que não são celebridades. Uma cronista à procura do extraordinário de cada vida anônima. Uma escritora que mergulha no cotidiano para provar que não existem vidas comuns.
O mendigo que jamais pediu coisa alguma. O carregador de malas do aeroporto que nunca voou. O macaco que ao fugir da jaula foi ao beber beber uma cerveja. O doce velhinho dos comerciais que é também uma vítima do holocausto. O homem que comia vidro, mas só se machucava com a invisibilidade.
Neste livro, você encontra essas e outras histórias extraordinárias da vida real. Ao final, também descobre algo sobre si mesmo.
O livro é composto de pequenas crônicas-reportagens, 21 ao todo, sendo que cada uma delas retrata pequenos — mas preciosos — recortes da vida de pessoas que, comumente, nunca paramos para prestar atenção. Esses textos foram inicialmente publicados na coluna homônima da jornalista no jornal Zero Hora, e então reunidos nessa bela edição, inaugurando o Arquipélago Editorial.
A beleza do livro é justamente a forma pela qual Eliane Brum, mesclando a narrativa e a notícia, torna os textos sempre intensos e mostra o extraordinário dessas vidas invisíveis.
“[…] uma frase só existe quando é a extensão em letras da alma de quem a diz.”
E Eliane diz tudo com toda sua alma.
Li o livro tendo momentos de me arrepiar de emoção em todos os textos, sem exceção. Para ser bem sincera, só de recordar tais sensações, vivenciei-os novamente, porque este é o poder da escrita de Brum: é comovente como a vida deveria ser, com o tom crítico inerente do jornalismo, mas nunca — jamais — perdendo a humanidade, a sensibilidade.
Favoritei 5 crônicas-reportagens: Enterro de pobre; O colecionador das almas sobradas; O chorador; O exílio; e Dona Maria tem olhos brilhantes. Dentre esses, Enterro de pobre e O chorador foram os dois que rasgaram meu peito e me deixaram no chão, destroçada.
Diga-se, porém, que todos os textos são excelentes, e não apenas os que eu mais gostei. Ler e se deslumbrar tem muito a ver com nossas fases, nossos momentos da vida; ora nos identificamos mais com alguns que com outros; essa é uma das maravilhas de reler livros. Muitas vezes, o que gostamos tem mais a dizer sobre nós mesmos do que sobre o livro em si. E acredito que, além de passarmos a enxergar a vida alheia e cotidiana com outros olhos, essa seja também uma das propostas de A Vida que Ninguém Vê, a de nos vermos refletidos nas narrativas da vida real, mas através dos olhos encantadores de Brum.
Enquanto lia o livro, não me saía da cabeça uma passagem (minha favorita) do livro A Menina que Roubava Livros:
“[…] de algum modo, e tenho certeza de que você deve ter conhecido gente assim, ele conseguia parecer uma simples parte do cenário, mesmo quando estava na frente de uma fila. Vivia apenas por ali, sempre. Indigno de nota. Não importante nem particularmente valioso.
O frustrante nessa aparência, como você pode imaginar, era ela ser completamente enganosa, digamos. Decididamente, havia valor nele […].” – Markus Zusak
Desde que li o livro de Zusak pela primeira vez, sei que algo se transformou dentro de mim, mas não permitir que o outro, o “indigno de nota” se torne uma banalidade exige um exercício constante não de percepção, mas de humanização mesmo, e é extremamente gratificante saber que existem profissionais como Eliane Brum com essa pauta, ainda que ela questione “e existe pauta não humana?¹”.
Dedico esse post, portanto, a todas as pessoas “invisíveis”. Vocês têm valor, vocês importam. Em alguma medida (extraordinária) suas vidas sempre encontram espelho na vida dos outros.
Às mãos “invisíveis” pelas quais o livro chegou até mim, sou também eternamente grata.
Nota:
¹Vide matéria de Joana Oliveira acima.
Dados Técnicos do Livro:
Capa comum: 208 páginas
Editora: Arquipélago Editorial; Edição: 1ª (22 de agosto de 2006)
ISBN-10: 8560171002 – ISBN-13: 978-8560171002
Livro presenteado.
Que resenha maravilhosa! Amo a forma como você se expressa, a impressão que tenho é que são palavras que saem do fundo da alma. “Quando crescer, quero escrever igual a vc” 🙂 🙂
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Eu encontrei a sua resenha no Google enquanto procurava saber mais sobre o livro da Eliane. Eu adorei a sua resenha. Acho que sempre nos impressionamos com a forma com que outras pessoas encontram palavras com as quais ressoam dentro de nós mas nós mesmos não conseguimos expressar daquela forma, né? Agradeço seu carinho, mas você me inspira muito!
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Muito obrigada! Suas palavras significam muito para mim. ❤❤
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Adorei a sua resenha, despertou meu desejo de ler este livro de Eliane Brum, não conheço.., Está na minha lista para 2020.
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Obrigada pelas palavras e pela visita! Leia sim, Bia. É um excelente livro, e dá pra ler rapidinho, mas cujo efeito vai ecoar um bom tempo em você.
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O livro deve ser muito interessante. Infelizmente, olhamos apenas para o nosso mundo! Td é direcionado ou decidido de acordo com nossos interesses. Raramente a intenção de ajudar/entender os outros é genuína.
Uma reflexão de como agimos basta para constatar isso…
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Amei a sua resenha!
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