Há quem condene os e-books, mas eu os tenho como grandes aliados. Ainda que haja uma aura romântica inegável pairando em torno de alguém lendo um livro físico, resistindo ao uso de telas – em salas de espera de consultórios, em pausas do trabalho, num café sem pressa -, eu sei que nem sempre é possível carregar nossos livros com a mesma facilidade de um smartphone. E foi justamente por essa facilidade que eu enfim consegui ler um livro que estava há muito tempo na minha TBR: “e eu não sou uma mulher?”, de bell hooks.
Eu tenho a edição física há anos, desde que tive parceria com o Grupo Editorial Record, mas como sempre havia muitos títulos para ler e prazos a cumprir, eu não consegui ler tudo que me foi enviado e alguns livros simplesmente foram se acumulando na fila de livros a ler da vida. Que jogue a primeira pedra quem nunca apinhou-se de livros assim, na promessa de que irá lê-los algum dia.
Mas eu finalmente li, e foi uma das melhores leituras do ano, sem dúvidas. Dessas impactantes, que nos fazem refletir muito e traz muito aprendizado.
A linguagem de bell hooks é muito fácil de compreender, o que sempre ajuda quando vamos de leituras mais técnicas, claro. Digo técnico porque este é um livro fruto de muita pesquisa, e que conta com referências bibliográficas ao final de cada capítulo. Mas, se assim como eu, você é apenas uma pessoa curiosa e que quer ler mais sobre assuntos como feminismo, mesmo sem estar atrelada a nenhum vínculo acadêmico ou mesmo profissional, este é um livro perfeitamente acessível para leigos, como eu.
Após algumas leituras sobre feminismo, eu considero este o livro mais importante dentre minhas leituras porque ele trata com muita clareza sobre a interseccionalidade no feminismo. Para bell hooks, não há que se falar num verdadeiro feminismo sem levar em conta, além de gênero, raça e classe social. Digo até que, quando li “A mística feminina” (que é inclusive mencionado por bell hooks no livro), estava ciente de que, por mais que eu tenha sido arrebatada por sua leitura, Betty Friedan foi criticada por outras feministas por apresentar apenas aspectos da luta sem qualquer consideração pela realidade das mulheres negras.
Os cenários que são levantados no livro de hooks refletem o de sua sociedade, claro: o feminismo nos EUA, mas raça e classe social devem ser estendidos a outras realidades quando se vai pensar o feminismo propriamente dito.
Num primeiro momento, temos um excerto da Introdução, já demarcando a interseccionalidade de raça desde o princípio. Num mesmo parágrafo (os parágrafos no livro costumam ser longos) lê-se:
“Quando feministas reconhecem coletivamente que mulheres negras são vitimadas e, ao mesmo tempo, enfatizam a força delas, deixam implícito que, apesar de mulheres negras serem oprimidas, elas conseguem contornar o impacto prejudicial da opressão ao serem fortes – e isso simplesmente não é o caso. […] Ignoram a realidade de que ser forte diante da opressão não é o mesmo que superá-la, que resistência não deve ser confundida com transformação. […] O estereótipo da mulher “forte” já não era mais visto como desumanizador, tornou-se a nova marca da glória da mulher negra.” p.25
Mais adiante, no capítulo 3, intitulado “O imperialismo do patriarcado“, destaco outros trechos que exprimem claramente a ideia de como é impossível separar gênero de raça ao se tratar do feminismo:
“Enquanto o movimento Black Power dos anos 1960 foi uma reação contra o racismo, foi também um movimento que permitiu aos homens negros anunciar publicamente seu apoio ao patriarcado. […] Racismo sempre foi uma força que separa homens negros de homens brancos, e sexismo tem sido uma força que une os dois grupos.” pp. 162/163
“Ainda que os interesses deste livro me levem a focar na misoginia do homem negro, não pretendo deixar implícito que eles são o perfeito exemplo da opressão sexista em nossa sociedade. Sempre houve maior ênfase nos atos violentos de homens negros na sociedade estadunidense, porque isso desvia a atenção da violência do homem branco.” p. 172
Já em termos de classe social, temos, por exemplo, extraído do Capítulo 5, “Mulheres negras e o feminismo”:
“Apesar de aliados feministas gostarem de pensar que o feminismo tem sido a força motivadora por trás das mudanças no papel da mulher, na verdade, as mudanças na economia capitalista estadunidense representaram o maior impacto no status das mulheres.”[…] “O feminismo tem sido usado como ferramenta psicológica para fazer mulheres pensarem que o trabalho, que em outra circunstância enxergariam como entediante, chato e demorado, é libertador. Porque, existindo ou não feminismo, mulheres precisam trabalhar. Ataques de misoginia manifesta ocorriam muito antes do feminismo, e a maioria das mulheres que aguenta a grande parte das agressões e brutalidades perpetradas por homens não é feminista. Muito da violência contra mulheres nesta cultura é promovida pelo patriarcado capitalista que incentiva homens a se verem como privilegiados, enquanto diariamente os destitui de humanidade em trabalhos desumanos e, como consequência, eles usam violência contra mulheres para resgatar o senso de poder e masculinidade que perderam“. pp. 172/173 (grifos meus)
Não vou dizer, porém, que foi uma perda de tempo ler livros como “A mística feminina”, “Sejamos todos feministas” . Ambos foram livros muito importantes nessa trajetória, cada um à sua maneira, agregando informações e dados, mas também despertando senso crítico. Talvez seja até interessante lê-los primeiro, mas complementar com “e eu não sou uma mulher?”, e sempre ir implementando mais leituras sobre o assunto. Talvez você não concorde com tudo que lê por aí (minha situação com o livro “Os meninos são a cura do machismo”), e acredito que faça parte do processo de leitura em si. Para isso criamos blogs, fazemos postagens sobre o que lemos e buscamos discussões saudáveis sobre assuntos que nos interessam, certo?
Essa foi uma leitura densa, mas que toda vez que eu pude dedicar um tempo a ela, foi muito proveitosa e fluida, mesmo com as necessárias pausas para os destaques no app em trechos que me botaram para refletir muito. Quero ler outros livros da autora.
Se você está à procura de livros para ler no mês da Consciência Negra e curte não-ficção, fica aqui uma bela dica.
Dados Técnicos do Livro:
- Capa comum: 320 páginas
- Autora: bell hooks
- Editora: Rosa dos Tempos, 9ª edição, 18 de novembro de 2019
- Tradução: Bhuvi Libanio
- ISBN-10: 8501117404 – ISBN-13: 978-8501117403
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