Noites Londrinas – Fernando Fiorin

Prestigiando não só escritores brasileiros, mas, numa esfera ainda mais íntima, com cara de “nosso”, trago-lhes minhas impressões sobre o livro “Noites Londrinas”, de Fernando Fiorin, um escritor paranaense. Fiorin nasceu em Uraí/PR, mas já está familiarizado com nossa Pequena Londres desde 2001, ano em que passou a viver na cidade de Londrina/PR.P_20171022_094612_vHDR_Auto_1

Publicado pela editora Madrepérola, agora em 2017, “Noites Londrinas” tem um enredo que pode ser comparado a um verdadeiro crescendo, em termos musicais. Enquanto o volume de uma música caminharia de um piano a um fortissimo, o romance de Fiorin parte da trivialidade do lar para a sordidez que infecta as ruas, as cidades, as pessoas, a humanidade.

Ambientada na cidade de Londrina, esta obra nos apresenta Jorge, um advogado inescrupuloso e arrogante que gere sua moralidade (e a dos outros) sempre em prol de seus próprios e egoísticos interesses.

Com 20 capítulos bastante concisos, Fiorin expõe uma trama que deixa o leitor ao final enojado, com ódio e aterrorizado. Afinal, quantos “Jorges” não devem existir por aí? E infelizmente, basta apenas um deles para levar outros, com ideais igualmente pútridos, a não ponderarem até onde deve ir seus limites éticos.

O que mais abomino em Jorge é sua intolerância. Embora ele esteja revestido da caricata forma do homem machista, preconceituoso e deteriorado, é sua intolerância, a meu ver, que toma as rédeas na hora de defini-lo. Sempre que me deparo com personagens assim me lembro de uma passagem incrível de “Kafka à beira-mar“, de Haruki Murakami:

[…] o que me desgosta são as pessoas desprovidas de imaginação. Os “homens vazios” de T.S. Eliot. Gente que preencheu esse vazio, esse vácuo deixado pela ausência de imaginação, com a palha da insensibilidade, e anda por aí sem ao menos se dar conta do que aconteceu com eles. Gente que força os outros a aceitar essa insensibilidade fazendo uso de palavras desprovidas de substância.

[…] 

Mentalidade tacanha e intolerância. Teorias infundadas, palavras vazias, ideais usurpados, sistemas inflexíveis. Estas são as coisas que eu realmente temo e odeio. É muito importante saber o que é certo e o que é errado. E erros de julgamento individuais são na maioria das vezes passíveis de correção. São reparáveis desde que haja coragem para reconhecer o erro. Mas a mentalidade tacanha e a intolerância resultantes da ausência de imaginação são como parasitas: transformam seus hospedeiros, metamorfoseiam-se e continuam a existir. Não há salvação para elas. 

Não há salvação para Jorge. Ele camufla sua intolerância e ausência de imaginação em seu ímpeto em sair sempre por cima, triunfante. A questão é: o que vem a ser “triunfo” para Jorge? Com ideais tão questionáveis, nosso protagonista não conquista a simpatia do leitor minimamente sensato, e sequer conseguimos dar uma resposta que justifique as ações deste infame advogado. Ou seja, Jorge é o escarro da sociedade em forma humana, despido de moralidade e entupido de uma ambição vazia de sempre levar a melhor.

Em que pese a trama tenha seus méritos, principalmente pelo imponente retrato da moral e das visões distorcidas pintado  de forma gradual por Fiorin, o brilhantismo dessa cadência pode acabar ficando ofuscado por alguns elementos falhos do livro.

Algumas destas falhas são pontuais, literalmente, e podem, talvez, passar despercebidos para leitores menos atentos ou não tão meticulosos (leia-se “chatos”), como eu. Outras, são falhas gramaticais, mas me limito a apontar sua existência apenas pelo meu estrito compromisso com o bom português, já que tanto as primeiras quanto estas últimas falhas decorrem, aparentemente, de uma completa ausência de revisão textual.

Falhas de outra ordem – e que talvez sejam mais relevantes -, porém, podem ser apontadas, num primeiro momento, na construção de alguns personagens. Esclareço. Alguns destes, tais como o colega de trabalho, Thiago, e o médico David, parecem surgir na história apenas para proporcionar uma deixa para Jorge eructar seus preconceitos, suas piadas grosseiras e sua podre moral, e somem tão repentinamente quanto aparecem. Também, gostaria, por exemplo, de ter visto um medo maior em Claudia pelos olhos do narrador; que esse medo extrapolasse suas palavras nos momentos em que dialoga com Jorge, e ficassem, portanto, mais evidentes nas observações do nosso narrador-onisciente. E Fiorin mostra que tem a habilidade exigida para tanto! É apenas uma questão de aprimorar os diálogos.

Diálogos, então, ainda que curtos, sem a interrupção do narrador, para mim sempre parecem tornar o texto frugal demais e, nesse caso, é um desperdício do talento de Fiorin. Entendo que às vezes pode-se pecar pelo excesso de intromissão e acabar retirando-se a espontaneidade de uma discussão, de um “bate-boca”. Mas feito com esmero, esse recurso apenas viria a enriquecer ainda mais a narrativa deste escritor paranaense.

Destaco alguns trechos que achei particularmente bem escritos:

“Satisfeito com os olhares resignados da mulher e dos amigos, Jorge encheu mais uma vez o copo e o tomou em dois grandes goles. A cerveja descia mais gostosa quando suas vontades eram realizadas”. 

“Casinhas que pareciam ter brotado às milhares da terra e tomado o lugar, como uma pústula que se espalha sobre uma pele marcada, com os esgotos a céu aberto correndo entre as tabas e choupanas […]”

“As luzes dos postes iluminavam prédios de várias cores e tamanhos, com suas janelas ora iluminadas e ora apagadas, como um estranho código que tentava dizer a Jorge algo a respeito de seu futuro”. 

Essas passagens, a meu ver, foram muito bem escritas porque Fiorin se utiliza racionalmente das palavras, sem muito exageros (que às vezes acontece ao longo do livro), mas que consegue transmitir inequivocamente a sensação desejada ao leitor. Por mera coincidência, nenhuma das passagens que destaquei apresenta expressões chulas ou obscenas, mas na maioria das vezes em que tais expressões aparecem no romance, elas são indispensáveis, pois denotam os rotos valores tão caros a Jorge. Podem, portanto, não serem belas passagens, mas, da mesma forma, são muito bem construídas.

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Por fim, visualmente, o livro agrada bastante. O projeto gráfico e a diagramação conferem ao conjunto da obra uma bela e requintada apresentação, digna de grandes editoras. Surpreendeu muito nesse quesito!

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De modo geral, portanto, a leitura de “Noites Londrinas” vale uma investida. A competência de Fiorin em nos apresentar o gradativo progresso da figura degenerada de Jorge é notável, e foi justamente essa dinâmica o que mais me agradou no romance. Serve-nos de triste lembrete de que a devassidão se encontra muito mais próxima de nós do que imaginamos. Jorge pode não esconder de ninguém sua postura inflexível, ardilosa e presunçosa, mas é verdade que existem pessoas de seu estirpe que se camuflam em sujeitos distintos e honrados. A virtude de Fiorin, porém, é trazer ao público um protagonista que não tem nada a esconder do leitor.

Para finalizar, se um dia o sonho de Fiorin se realizar e “Noites Londrinas” for para as grandes telas, por favor, não deixe de considerar a sugestão desta música para a trilha sonora: Living for the night – Viper (obs: eu sei que a música é velha…)

 

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