Brasil, construtor de ruínas – Eliane Brum

Brasil, construtor de ruínas: um olhar sobre o país de Lula a Bolsonaro

“Busco interpretar neste livro as duas primeiras décadas do século 21. Ou o que considero mais significativo neste período em que nos amamos tanto para em seguida nos odiarmos tanto. Meu percurso vai do primeiro mandato de Lula até os primeiros cem dias do governo de Jair Bolsonaro, mas sem obedecer a linearidades. Me preocupo mais em perceber conexões, tecer relações e iluminar desvãos. Escrevo a partir dos fios que fui puxando nos últimos anos para percorrer o labirinto chamado Brasil. Em especial, a partir do que tenho nomeado como ‘autoverdade’ e ‘crise da palavra’ e também a partir da desidentificação do país com os imaginários que o sustentaram por tantas décadas. O maior desafio do Brasil de hoje é devolver a verdade à verdade. É voltar a reencarnar a palavra e ser capaz de tecer o ‘comum’. Espero que este livro possa colaborar para o esforço coletivo de descolonizar o pensamento e recolocar as periferias no lugar ao qual pertencem: o de centro. Como afirma o povo Guarani Kayowá, palavra é ‘palavra que age’. A palavra precisa voltar a agir no Brasil.” — Eliane Brum


Antes de iniciar a leitura deste livro, vi-me tomada por dois sentimentos: queria encontrar uma forma lúcida de explicar algum dia a mim mesma e a meu filho o que acontecia em nosso país no ano em que ele nasceria, — e como chegamos a esse atual cenário — mas, por outro lado, à medida que a expectativa por seu nascimento crescia junto com minha barriga, não queria ler nada que fizesse despedaçar-me em meio à plena quarentena.

Tomei da estante o livro de Eliane Brum determinada, então, a encontrar palavras que expusessem de forma crítica e satisfizessem meu primeiro sentimento, mas ainda incerta quanto ao segundo. Assim que iniciei a leitura, porém, percebi que não poderia ter feito escolha melhor, pois compreendi que encarar a realidade não me destruiria, não através do olhar de Eliane. Ela me ganhou novamente com mais um livro, porque, ainda que nem pudesse imaginar a pandemia que tomaria conta do mundo (e que traria mais uma crise a se somar a todas às nossas crises), ela inicia seu percurso narrativo lembrando-nos de suas palavras na coluna de opinião do El País, antes do impeachment de Dilma, sobre a desesperança. Meu maior medo era enfrentar uma leitura real demais para essa quarentena. Já não bastam todas as nossas dificuldades? Querer, agora, nesse período de crise acentuada, em vez de refugiar-se, adentrar profundamente nossa triste realidade? Bom, acontece que eu não queria apenas refúgio, embora seja muito tentador (e compreensível neste momento), mas eu queria também respostas, luz, explicações. Porque compreender o trajeto percorrido também é uma forma de refúgio, de resguardar-se, ainda que seja da ignorância, do vendar de olhos, de negar a realidade. Afinal, “Não se vai a futuro algum negando o passado.” (p. 143)

“Talvez tenha chegado a hora de superar a esperança. Autorizar-se à desesperança ou pelo menos não linchar quem a ela se autoriza. Quero afirmar aqui que, para enfrentar o desafio de construir um projeto político para o país, a esperança não é importante. Acho mesmo que é supervalorizada. Talvez tenha chegado o momento de compreender que, diante de tal conjuntura, é preciso fazer o muito mais difícil: criar/lutar mesmo sem esperança. Teremos de enfrentar os conflitos mesmo quando sabemos que vamos perder. Ou lutar mesmo quando já está perdido. Fazer sem acreditar. Fazer como imperativo ético.” (p. 14)

E assim, casados meus dois sentimentos, guiada pela qualidade da escrita e discernimento de Eliane Brum, ingressei na leitura.


Para tecer esse ensaio, que agrupa de forma única o que me parecem vários pensamentos ensaísticos que se debruçam sobre o Brasil de Lula a Bolsonaro, Eliane Brum parte  da escuta das periferias da Grande São Paulo e da escuta dos povos da floresta amazônica.

Nada passa sem a minuciosa análise da jornalista: de fatos notórios incendiados na mídia como a Lava Jato ao funk ostentação, do voto de Jair Bolsonaro pelo impeachment, invocando um torturador, aos descabidos xingamentos de baixo calão dirigidos pela população a ex-presidente Dilma Rousseff para manifestar a insatisfação com seu governo, cada fato trazido para o debate no livro ajuda a moldar o cenário do Brasil e a compreendê-lo; nos apontamentos de Brum nada parece menor, pequeno ou desimportante, porque, de fato, não o são. É com esse olhar, atento a tudo, que Eliane reforça seu empenho em trazer as periferias para o centro.

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Muito embora o recorte do livro só se dê até o centésimo dia de governo de Bolsonaro, nada do que se seguiu depois desse marco temporal não poderia encontrar reverberação no que já fora explorado por Eliane ao longo de “Brasil, construtor de ruínas”. Ou talvez, melhor fosse dizer: todos os absurdos (que infelizmente parecem não disparar o alerta de algumas pessoas) que se seguiram em seu governo encontram respaldo nas palavras já delineadas pela escritora. Mas quem quiser ter mais luz sobre o momento atual, sempre pode acessar as colunas dela no editorial do El País.

Ao ler este livro, os contrastes — muito bem retratados pelas imagens no documentário de Petra Costa (“Democracia em Vertigem“): da alegria estampada nas ruas pela vitória de Lula nas urnas como presidente da república ao ódio manifesto, no impeachment de Dilma, sob a sombra tenebrosa do pato da Fiesp — não deixaram de me chocar, mas certamente percorri um caminho que me permitiu colher diversas conexões entre fatos que moldam e de alguma forma explicam como alguém como Bolsonaro chegou à presidência e o que significa ter alguém como ele neste cargo. Também citado por Eliane Brum, em referência à obra The Handmaid’s Tale (“O Conto da Aia” – Margaret Atwood, Editora Rocco) a frase “Estava acontecendo aos poucos e não percebemos” resume bem essa infeliz trajetória do Brasil.

Diga-se, ainda, que Eliane é igualmente crítica a Lula, Dilma, Temer e Bolsonaro (e também outras figuras políticas), naquilo que lhes cabe a crítica. Assim, qualquer pessoa, seja qual for o lado que se creia estar, deveria ler este livro, para ser impactado com sua lucidez e para debater ideias (ainda que num primeiro somente consigo mesmo, pois creio também que hoje falte esse confronto interno com nossas próprias visões de mundo e a dos outros). Quando da citação inicial deste post, Eliane fala que um dos desafios do Brasil é “devolver a verdade à verdade”, é disso que se trata: ter a vida humana novamente como valor máximo. Por isso o debate, em forma de um diálogo, é tão importante. Mas para que esse diálogo seja possível, é preciso que valorizemos também os fatos e não as ‘autoverdades’, como Eliane denomina o fenômeno em que a verdade do indivíduo, o “dizer tudo” o que se pensa é tido como uma virtude, como sinônimo de honestidade, e vale mais que o conteúdo em si. Autoverdades não permitem o diálogo, e precisamos dialogar.

Também, não poderia deixar de falar da capa do livro, que me parece muito simbólica. Sei que Eliane almeja com esse ensaio incutir nas pessoas a compreensão pela necessidade de devolver às palavras seu poder, mas ela também, ao longo do livro, destaca como imagens podem ser poderosas. Achei, portanto, extraordinária a opção por trazer na capa o reflexo de uma imagem e na contracapa o objeto “principal”, a ser refletido. A foto é de Lilo Clareto, e trata-se do reflexo de árvores mortas no reservatório da usina de Belo Monte, mas se tornam o foco ao serem elegidas para estampar sua frente (capa), enquanto a imagem “real” fica relegada à contracapa. É a retratação de uma imagem distorcida, uma natureza morta (efetivamente morta) embaçada, e portanto apagada, silenciada, indigna de notoriedade. Mas não aos olhos perspicazes de Eliane Brum. E é desta forma que, mesmo por aspectos visuais, a escritora também encontra seus meios de devolver ação à palavra, porque há muitas verdades que não podem mais ser simplesmente silenciadas, e que deveriam ser alçadas ao status de evidência máxima, como a da capa de um livro.

Estou mais uma vez apaixonada pela escrita de Eliane Brum.


Reflexão:

Quem acaso se sinta incomodado com este texto e com as interpretações de Eliane, sugiro que se preocupe mais em não parecer um preguiçoso, para usar o termo por ela cunhado, que simplesmente “adere àquele que grita, saliva, vocifera, confundindo ódio com força, berro com verdade, máscara com rosto” (p.82) e enuncia ‘autoverdades’ vazias. Realmente, aderir é mais fácil e cômodo do que efetivamente pensar de forma crítica, que exige interpretação, e, muitas vezes, uma quantia razoável de leituras. Não apenas de textos, livros, mas de nós mesmos, do nosso caráter e dos próprios valores que carregamos dentro de nós, que parecem descompensados atualmente pela falta de senso crítico em prol da adesão barata.

Deveria ser do interesse de todos a cessação de ‘autoverdades’ do governo. A lógica da ‘autoverdade’ pode até valer para campanhas eleitorais, ainda que moralmente reprovável, mas como representante eleito,  proferir a verdade do indivíduo apelando para a desconstrução dos fatos não é prestar contas ao público. É uma declaração vazia. Nessa hora, não é a superestimada e distorcida “honestidade” do candidato que soluciona os problemas do país. É um dizer sem fazer nada. Até quando vamos continuar aceitando isso como virtude? É preciso abrir os olhos. Embora, conforme Eliane exponha, não tenha sido Bolsonaro o responsável pelo esvaziamento das palavras, ele faz uso constante dessa técnica, não porque “ele é legal, sincerão”, como costumam dizer por aí, mas porque lhe é benéfica. Ela lhe permite continuar simulando o exercício de um cargo que efetivamente ele não exerce: a de presidir e governar um país. Opinião não é ação (embora diga muito sobre o caráter da pessoa). É preciso muito mais, e devemos exigir mais. Minha sugestão inicial e mínima, como alguém que acredita no poder da leitura é: leia mais, informe-se mais. Não seja preguiçoso(a). Que tal começar justamente com esse livro?


Dados Técnicos do Livro:

Capa comum: 304 páginas

Autora: Eliane Brum (jornalista, escritora e documentarista)

Editora: Arquipélago Editorial; Edição: 1 (20 de outubro de 2019)

ISBN-10: 8554500318 – ISBN-13: 978-8554500313

Livro adquirido através site da editora.

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6 comentários

  1. Quando vi seu texto no IG, já corri para comprar o meu ebook!
    Capaz de logo sair uma parte 2, porque essa temporada está difícil de acompanhar, vou te dizer…
    Também estou bastante interessada em ler o Tormenta, que saiu pela Companhia das Letras, mas ainda não tive tempo ($), você chegou a ver alguma coisa a respeito?

    Curtido por 1 pessoa

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