Na proposta de seguir com o Desafio Lendo Asiáticos, acabei topando com o livro Palavras de Fogo de Jidi Majia. Trata-se de poesia chinesa, que nunca tinha lido até então, embora tenha, nos meus primórdios de leitora apaixonada, passado por alguns livros de ficção chinesa.
A leitura de Palavras de Fogo foi sem dúvida um marco importante para mim nesse desafio, porque me deparei com a imensidão da China e conheci um grupo étnico minoritário chamado nuoso, do qual Jidi Majia faz parte. Às vezes, ao escolher livros de determinadas etnias, quando topamos com a descrição “autor chinês/japonês/sul-coreano”, por exemplo, é muito fácil generalizar o autor dentro de um grupo maior e tomar aquilo como referência para todo um país, mas desta vez tive de me lembrar da extensão continental da China, e pensando no próprio Brasil, tão cheia de diversidade cultural, saí da zona de conforto do imaginário da China que vem à cabeça quando penso apenas nos filmes como Mulan e O Tigre e O Dragão, e desbravei novas zonas.
Dos quase 200 poemas constantes do livro, a maioria trata de sua terra natal, com sua paisagem montanhosa campestre de trigos sarracenos, do seu céu sendo cortado pela ave pássaro-sol, das vozes dos bimos, os sacerdotes locais, ecoando junto ao som dos instrumentos musicais de seu povo, das águas límpidas que banham a criança que nasce, do poder e fragilidade das mães do povo nuoso. Esses poemas são os que mais me agradaram, remetendo-me a uma longa viagem de imersão nas montanhas de Liangshan e no Lago Lugu e seu folclore belíssimo sobre os gansos e a donzela.
“Sou as histórias escritas em língua nuosu./ Ao cortar o cordão umbilical, nasci de uma mulher;/[…/ A minha mãe nunca envelhece,/ é cantora nesta terra./ Tem profundidade rio que nela corre./ A minha amada eterna/ é beleza entre as belezas./ Chamam-lhe Gamo Anyo.” (beldade lendária do povo nuoso).
Mas Majia vai muito além. Mostra que a poesia é universal, através de uma riqueza de referências que, para ser bem sincera, fogem muito do meu conhecimento, mesmo quando se tratam de poetas daqui da América do Sul. Achei bem interessante como ele alça voo para fora de suas terras, mas sempre imprimindo seu olhar nuoso. Nem poderia ser diferente, claro. Todo pouso extraterritorial nosso só existe em contraste com aquilo que carregamos dentro de nós, nossa ancestralidade, nosso lar, nossa bagagem interna.
Apesar de interessante, o tanto de referências desconhecidas foi ficando bastante cansativo ao final do livro, e ficou enfadonho com o longuíssimo poema Para Vladmir Mayakovsky. Não estivesse eu já aos finalmente do livro, creio que o teria deixado de lado, sem ânimo para retomar a leitura. Mas os últimos poemas após apaziguaram um pouco meu descontento, porque recapturaram o ritmo agradável que senti no início do livro.
A sensação que tive ao ler este livro foi de fechar os olhos e ter minha alma transportada até o sudoeste da China, sobrevoando o Atlântico, a África, o Oriente Médio, a Índia e adentrando o corpo de um homem nuoso. Dentro de sua cabeça já, viajei novamente, conectando-me ao mundo através de extensas leituras e estudos e caminhadas, para finalmente voltar-me, abrindo os olhos e, ainda como nuoso, fitar o perfil das montanhas no horizonte. Sim, uma grande viagem. E, como todo grande percurso, houve identificação, houve maravilhamento, mas também houve percalços.
Curiosidade: o poeta é vice-presidente da Associação de Escritores da China, poeta premiado nacional e internacionalmente e um dos maiores poetas de minorias da China. Também ex-Vice-Governador da província de Qinghai (2006-2010).
Sinceramente, gostaria muito de ver um governador que também fosse poeta por aqui.
Dados Técnicos do Livro:
Capa comum: 192 páginas
Autor: Jidi Majia
Editora: Dublinense; 1ª edição (1 dezembro 2020)
ISBN-10: 6555530065 – ISBN-13: 978-6555530063
Título original: 火焰与词语 —— 吉狄马加诗集
Tradução: José Luís Peixoto
*Edição adquirida junto ao site da editora.